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segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Surfo, logo existo - Uma homenagem ao guerreiro Taiu

Taiu e os amigos no Guarujá para uma incrível session com a Jabiraca. Foto: Diana Bueno

Por Paulo Marreco

Na areia fria, aguarda o momento, aquele ansiado, derradeiro momento tão longamente sonhado em sonhos impossíveis. Seus olhos vislumbram atentos o oceano, esse velho, amado, amigo, entranhado companheiro há tanto distante, inalcançável até o dia de hoje. Mas hoje eles iriam se reencontrar. Depois de uma vida, sim, eles iriam se reencontrar.

Seu corpo quebrado não era mais o mesmo; as ondas, nem sombra das montanhas que amava e que aprendera a domar com maestria. Em seu peito ofegante, um violento turbilhão de conflitantes emoções, das quais o medo se sobressaía.

Não aquele antigo temor, natural e presente sempre que se via diante de um oceano de vagalhões em fúria; mas o medo de que não desse certo, de que não fosse possível, de que estivesse apenas sonhando um sonho vão. Aguardou em silenciosa inquietude até que tudo estivesse pronto.

Em sua mente, imagens e saudades etéreas de distantes, fugazes ondas gigantes, emergidas de um passado que quase não parecia mais seu. Diante de si a promessa, a esperança de voltar a sentir, de voltar a viver, de ser livre mais uma vez, de que o seu destino retornasse sobre ele mais uma vez. Perguntas excruciantes ferroavam sua mente inquieta. Poderia voltar a ser livre apesar da pétrea imobilidade de seus membros?

Poderia voltar a ser livre apesar de não ser capaz de, sozinho, vencer, dominar, cavalgar novamente as montanhas de água? Seria livre, apesar das amarras, das cadeira, da dependência da remada de outros braços em lugar dos seus? Seria possível sentir novamente aquela doce emoção, apesar da posição mal lhe permitir ver o que se passaria à sua frente?

Apesar das parcas ondas não serem nem sombras das que ele dominara outrora?Lembrou-se do inefável mestre Borges: “breve saberei quem sou”. Descansou. Placidamente, deixou-se amarrar à larga tábua que, mais do que nunca, representava, se não a salvação, a redenção daquele corpo de dores e de silenciosas, solitárias lágrimas noturnas.

O contato da água fria fez brotar de imediato sensações que havia paulatinamente forçado a se fazerem adormecer dentro dele, desde aquele dia fatídico, desde aquele dia de sinistra memória. Enquanto a prancha rumava lentamente em direção ao tranquilo lineup, lembranças das tantas vezes em que fora feliz ali mesmo naquela praia e em tantas outras praias ao redor do globo inundaram sua alma de surfista.

Sim, por dentro, não importava o quê, ainda era um surfista. Não importasse o quê, sempre seria. E hoje seria, literalmente, mais uma vez. Já no fundo, esperaram. Pareciam inseguros, temerosos. A primeira vez, o medo do desconhecido, o medo do inesperado, a responsabilidade total por uma vida. A onda. A remada cuidadosa.

Com dificuldade, lentamente, a prancha deixou-se levar pela fraca marola, de menos de meio metro. Imóvel sobre o enorme objeto, saboreou o vento no rosto, as gotas de água salgada respingando sobre seu corpo, o rumor da onda dobrando-se em direção à praia, o coração cavalgando abrupto, o prazer inebriante de surfar novamente.

Sim, era possível; sim, era livre mais uma vez; sim, o mundo estava novamente onde sempre deveria estar. Era possível, e dali em diante seria sempre e novamente e de novo e quantas vezes possível até que não mais.

Seu corpo voltara a ser, apesar de tudo, o surfista que sua alma nunca havia deixado de ser.

Então é verdade, sorriu, vencedor.

Ainda estou vivo.

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